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Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique. O C aso de Mocímboa da Praia

Este texto de autoria de Forquilha, habibi e Pereira, surge numa altur...
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Metodos de estu e habilidades para a vida (MEHV1)

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Radicalização Islâmica

no Norte de Moçambique

O Caso de Mocímboa da Praia

Saide Habibe, Salvador Forquilha e João Pereira

Cadernos IESE N.º 17

“Cadernos IESE”

Edição do Conselho Científico do IESE

A Colecção “Cadernos IESE” publica artigos de investigadores permanentes e associados do IESE no quadro geral dos projectos de investigação do Instituto.

Esta colecção substitui as anteriores Colecções de Working Papers e Discussion Papers do IESE, que foram descontinuadas a partir de 2010.

As opiniões expressas através dos artigos publicados nesta Colecção são da responsabi- lidade dos seus autores e não relectem nenhuma posição formal e institucional do IESE sobre os temas tratados.

Os Cadernos IESE podem ser descarregados gratuitamente em versão electrónica a partir do endereço iese.ac.

“Cadernos IESE”

Edited by IESE’s Scientific Council

The Collection “Cadernos IESE” publishes papers written by IESE’s permanent and associa- ted researchers, and which report on issues that fall within the broad umbrella of IESE’s research programme.

This colleetion replaces the previous two collections, Working Papers and Discussion Pa- pers, which have been discontinued from 2010.

The individual authors of each paper published as “Cadernos IESE” bear full responsibility for the content of their papers, which may not represent IESE’s opinion on the matter.

“Cadernos IESE” can be downloaded in electronic format, free of charge, from IESE’s web- site iese.ac.

Agradecimentos

A pesquisa na origem deste relatório não teria sido possível sem a colaboração e o con- tributo de camponeses, pescadores, vendedores informais, líderes religiosos, alguns ele- mentos das Forças de Defesa e Segurança (FDS), funcionários da administração local e das organizações da sociedade civil que vivem e trabalham nos distritos de Mocímboa da Praia, Macomia, Chiure, Montepuez e Pemba, na província de Cabo Delgado, e Memba, Nacala- -Porto, Nacala-a-Velha e Ilha de Moçambique, na província de Nampula. A todos eles vai o nosso profundo agradecimento.

Agradecemos, igualmente, a Luís de Brito, Michel Cahen, Eric Morier-Genoud, Sérgio Chi- chava e Crescêncio Pereira por terem lido e comentado criticamente as primeiras versões deste relatório de pesquisa. Evidentemente, quaisquer erros e eventuais imprecisões ao longo do texto são da nossa inteira responsabilidade, na qualidade de autores do estudo.

Título: Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique. O Caso de Mocímboa da Praia

Autores: Saide Habibe, Salvador Forquilha e João Pereira

Copyright © IESE, 2019 Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) Av. do Zimbabwe 1214 Maputo, Moçambique Telefone: + 258 21486043| Fax: + 258 21485973 Email: iese@iese.ac Website: iese.ac

Proibida a reprodução total ou parcial desta publicação para ins comerciais.

Execução Gráica: Fundação MASC Impressão e Acabamentos: Minerva Print Tiragem: 300 exemplares

ISBN 978-989-8464-43-

Número de registo: 9992/RLINICC/

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Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique O Caso de Mocímboa da Praia

Novembro de 2017 e Fevereiro de 2018 1. Nesta fase, a pesquisa procurou centrar as aten- ções, essencialmente, para as origens do grupo, a sua natureza, mecanismos de inancia- mento e reprodução. Concretamente, a pesquisa procurou recolher e analisar informação à volta das seguintes questões:

  • Como surgiu o grupo armado que perpetra ataques em Mocímboa da Praia?
  • Qual é a sua base social?
  • Quais são as suas motivações?
  • O que leva uma parte da juventude a aliar-se ao grupo?
  • Quais são os mecanismos de recrutamento?
  • Como o grupo está estruturado e como ele opera a nível local?
  • Que tipo de treinamento recebe?
  • Quem treina os seus membros?
  • Será que o grupo tem alguma base ideológica?
  • De onde vem o inanciamento?
  • Como as comunidades locais e suas lideranças reagem às investidas do grupo?
  • Existe algum tipo de ligação entre o grupo e grupos islâmicos radicais de Al- -Shabaab da Somália e do Quénia?

A pesquisa exploratória foi concebida como parte importante de um programa de investi- gação na sua fase inicial no IESE, intitulado “Estado, violência e desaios de desenvolvimen- to em Cabo Delgado”. Além disso, esta pesquisa exploratória visava trazer subsídios para alimentar o futuro plano estratégico da Fundação MASC, com enfoque na prevenção da radicalização da juventude na zona norte de Moçambique. Neste contexto, algumas das questões colocadas na fase exploratória da pesquisa serão retomadas e aprofundadas no programa de investigação acima mencionado.

Metodologia

Radicalização é um conceito relativamente recente nas ciências sociais e a sua deinição não é consensual. Por isso, o conceito tem sido objecto de muita controvérsia (Neumann, 2013). Uma vasta literatura produzida nos últimos anos sobre o fenómeno da radicalização mostra não só a complexidade do debate, mas também uma certa imprecisão do conceito

1 Posteriormente, ao longo do ano de 2019, houve três visitas de seguimento à província de Cabo Delgado, nomeada- mente uma em Fevereiro, outra em Março e outra ainda em Abril.

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(Githens-Mazer, 2012; Sageman, 2004; Neumann, 2013; Borum, 2011; Wiktorowicz, 2006; Moghadam, 2005; Mandel, 2009). Com efeito, como Githens-Mazer (2012) sublinha, o con- ceito de radicalização tem sido usado para dar conta de uma diversidade de situações, desde formas de populismo, passando por actos revolucionários de contestação de um poder político em declínio, até à intensiicação de orientações e comportamentos políticos existentes, geralmente marcada por uma mudança de actividades pacíicas para extremis- mo violento (Githens-Mazer, 2012, p. 557). De acordo com Neumann (2013), o debate sobre radicalização estruturou-se sobretudo à volta de duas posições. Por um lado, a posição que deine a radicalização colocando a enfase em “crenças extremistas” – radicalização cogniti- va – e, por outro lado, a posição que sublinha comportamento extremista – radicalização comportamental (Neumann, 2013: 873).

Githens-Mazer (2012) considera que uma das fraquezas das pesquisas sobre radicalização consiste na ausência de trabalhos empíricos que possibilitem a elaboração de uma deini- ção explícita do conceito. No entanto, essas pesquisas podem ser divididas em três grupos, em função da maneira como se olha para o fenómeno da radicalização. O primeiro grupo olha para a radicalização em termos de processo. Nesse sentido, a radicalização é vista, por um lado, como um conjunto de etapas através das quais um indivíduo se torna terrorista e, por outro, como mudança de crenças e comportamentos que propiciam a aceitação do uso da violência. O segundo grupo de pesquisas olha para o fenómeno da radicalização como causação, ou seja, procura entender as causas possíveis que explicam as razões da radicalização de um indivíduo. Além disso, vista em termos de causação, a radicalização é também tida como um instrumento que visa trazer mudanças numa sociedade, como forma de reagir a um status quo ou a uma governação pobre. O terceiro grupo é constituí- do por pesquisas que deinem o conceito de radicalização em termos negativos, ou seja, ela não pode ser necessariamente assimilada ao terrorismo ou violência (Githens-Mazer: 2012, p. 558). Nesta pesquisa exploratória, embora nos interesse olhar para a radicalização em termos de processo, a nossa atenção está focalizada nas suas causas e, portanto, assu- mimos uma abordagem de radicalização em termos de causação. No nosso entender, isso vai permitir apreender melhor e explicar não só as razões que levam um grupo a usar a religião para introduzir mudanças numa sociedade de uma forma violenta como também as causas que conduziram ao surgimento do grupo que actua no norte de Cabo Delgado, que, em nome de um Islão radical, ataca instituições do Estado e população civil. É esta a abordagem que estrutura as nossas perguntas de pesquisa.

A pesquisa consistiu na revisão da literatura sobre política e religião, com destaque para os movimentos radicais islâmicos. Com vista a se ter um melhor entendimento do fenómeno

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Cadernos IESE n.º17 | 2019

A informação recolhida durante o trabalho de campo permitiu reconstituir trajectórias de vida de algumas iguras, que, de acordo com relatos locais, foram personagens-chave na actuação do grupo, pelo menos nos meses que precederam o ataque armado de 5 de Ou- tubro de 2017. Com vista a proteger os informantes, todas as fontes de informação entre- vistadas e participantes nas discussões em grupos focais estão anonimizadas 2.

Um movimento jihadista em Moçambique? Elementos

para a compreensão das origens do grupo

Quando a notícia do ataque armado de Mocímboa da Praia começou a correr o mundo, no início de Outubro de 2017, em muitos canais televisivos, jornais e debates nas redes sociais havia uma série de perguntas sobre as razões dos ataques e, sobretudo, a identidade e origens do grupo que os protagonizou. Com efeito, na maior parte dos casos, as perguntas comuns eram: “De onde vem esse grupo de Mocímboa da Praia? Trata-se mesmo de um grupo fundamentalista islâmico? Existe fundamentalismo islâmico em Moçambique? Não se trata de elementos da Renamo disfarçados de fundamentalistas islâmicos? 3 ”

De acordo com as entrevistas e discussões em grupos focais efectuadas durante a pesqui- sa, o grupo que atacou instituições do Estado na vila de Mocímboa da Praia, a 5 de Outubro de 2017, surge na zona norte de Cabo Delgado, primeiro, como um grupo religioso e, em inais de 2015, passou a incorporar células militares. O grupo é denominado Al-Shabaab 4 não só pelas comunidades locais mas também pelos seus próprios membros. As suas ac- ções correspondem ao fundamentalismo religioso de combate à inluência ocidental e de implantação radical da lei islâmica – a sharia e o combate aos inimigos do Islão. O nome Al- -Shabaab signiica “juventude” em árabe. De acordo com as entrevistas e discussões em grupos focais, o grupo de Mocímboa da Praia tem ligações com as redes do Harakat Al- -Shabaab al-Mujahedeen, ou somente Al Shabaab, que é um grupo jihadista de origem so-

2 Todas as entrevistas e discussões em grupos focais foram conduzidas em língua portuguesa. 3 Este tipo de interpretação resulta do facto de o maior conlito, consubstanciado na contestação ao Estado ter sido, até então, liderado pela Renamo. 4 O termo Al-Shabaab é usado em Mocímboa da Praia por analogia ao grupo Al-Shabaab que opera na Somália e no Quénia, constituído nos anos 1990 como uma ala militarizada da União dos Tribunais Islâmicos (UTI). No caso da Somália, nessa altura, o grupo era uma força constituída por poucos elementos, mas efectiva na concretização das suas missões, com líderes dedicados a jihad. Alguns desses líderes tinham experiência de actuação no Afeganistão. A sua ala militarizada foi constituída inicialmente por antigos elementos da AIAI (Al Itihaad al Islamiya), uma organização islâmica somali formada na década de 1980 por um grupo de somalis wahhabis educados no Médio Oriente que lutavam contra o governo do ditador Mohamed Siad Barre. Para uma análise mais detalhada sobre a origem do grupo Al-Shabaab na Somália, ver: Menkhaus (2007a; 2007b); Menkhaus (2008).

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Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique O Caso de Mocímboa da Praia

mali que opera principalmente na Somália e no Quénia.

Segundo as lideranças religiosas islâmicas locais, inicialmente, o grupo era conhecido pela designação Ahlu Sunnah Wal-Jamâa, o que signiica, traduzido do árabe, “adeptos da tra- dição profética e da congregação”. Na realidade, no Islão, esta designação refere-se a qual- quer muçulmano, no sentido de que é chamado a seguir a tradição do profeta Muhammad. Na perspectiva do grupo, as comunidades de Mocímboa da Praia não estavam a seguir a tradição do Profeta. Daí o facto de o grupo querer apropriar-se da designação Ahlu Sun- nah Wal-Jamâa para se destacar das comunidades locais, que supostamente praticavam um Islão “degradado”. Todavia, para as lideranças religiosas e as comunidades islâmicas locais o grupo é que pregava e praticava um Islão “degradado” e fora da linha do profeta Muhammad.

No início, os integrantes do grupo eram maioritariamente jovens de Mocímboa da Praia. De acordo com as entrevistas efectuadas, os seus líderes tinham ligações com certos cír- culos religiosos e militares, nomeadamente células de grupos fundamentalistas islâmicos da Tanzânia, Quénia, Somália e região dos Grandes Lagos 5. Alguns elementos do grupo tinham ligações indirectas com líderes espirituais da Arábia Saudita, Líbia, Sudão e Argélia, essencialmente através de vídeos ou de pessoas que tinham estudado nesses países graças a bolsas de estudos inanciadas por homens de negócios locais e estrangeiros (particular- mente madeireiros e garimpeiros ilegais) provenientes da Tanzânia, Somália e da região dos Grandes Lagos. Em Moçambique, uma parte desses jovens está concentrada na zona norte e outra na cidade de Maputo. 6 É importante referir que, nesses países, alguns profes- sores desses jovens também tinham sido formados no estrangeiro, particularmente nas monarquias do Golfo Pérsico, onde estiveram em contacto com círculos fundamentalistas. A este respeito um dos líderes islâmicos em Pemba mencionou o seguinte:

“(...) Os nossos jovens foram desviados pelos seus professores que estudaram fora... professores interpretam o Alcorão completamente diferente daquilo que ensinamos nas nossas madrassas... Alguns deles são salaistas e outros wab- bitas.. salaismo e wabbismo são correntes teológicas muito perigosas... Não se pode ensinar a estes jovens o salaismo e nem o wabbismo.... Nem devemos trazer estes professores que estiveram em contacto com os salaistas para Cabo

5 É importante referir que Mocímboa da Praia ica na rota da migração que tem origem precisamente na Somália e entra em Moçambique atravessando o Rovuma, para depois sair para a África do Sul pela fronteira de Ressano Garcia. Nesta fronteira, os migrantes usam documentação falsa, geralmente comprada a nível local, para sair de Moçambique. Rei- ra-se que na região norte de Moçambique existem duas mesquitas que são conhecidas por acolher população migrante, geralmente de origem somali. 6 Na cidade de Maputo esses jovens não frequentam mesquitas especíicas e muitos deles não estão enquadrados no mercado de emprego.

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Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique O Caso de Mocímboa da Praia

a reunir-se num edifício inacabado, transformado em mesquita, que recebeu o nome de Masjid Mussa. A transformação deste edifício numa mesquita contou com a contribuição monetária e mão-de-obra dos membros do grupo. Além disso, o grupo reunia-se também no quintal de um dos seus membros, conhecido por Mussa Sabão.

Como o governo local reagiu à presença do grupo? Em geral, face a muitas queixas das autoridades religiosas locais sobre a existência de um grupo com tendências radicais que agitava as mesquitas, o governo local (nos distritos abrangidos) teve uma abordagem dife- renciada. Enquanto em Chiúre e Montepuez os governos distritais reagiram de uma forma contundente em relação ao grupo, originando a fuga dos seus elementos para distritos vi- zinhos, em Mocímboa da Praia e Macomia, as autoridades reagiram dizendo que se tratava de um problema interno das mesquitas e, por conseguinte, cabia às lideranças religiosas encontrar a solução para o problema 12.

Quem eram os actores chave do grupo?

O sucesso e a consolidação de um grupo desta natureza dependem em grande medida das suas lideranças. De acordo com as entrevistas e discussões em grupos focais realizadas durante o trabalho de campo, a liderança do grupo era constituída por actores nacionais e estrangeiros. Com base em fontes locais, nas linhas a seguir procuramos reconstituir o per- il dos principais actores do grupo. Por razões metodológicas, ao longo do texto, os nomes dos actores aparecem identiicados pelas letras iniciais.

Um nome frequentemente mencionado nas entrevistas foi O. B. De acordo com fontes lo- cais, O. B. era natural de Mocímboa da Praia e estudou em algumas madrassas locais antes de partir para a Tanzânia, onde esteve em contacto com círculos de seguidores do salais- mo. O. B. era bom falante de línguas locais, árabe e kiswahili. Entre 2013 e 2014, ele teria criado um pequeno grupo de jovens que passou a reunir-se na sua casa visando penetrar nas mesquitas locais. O seu objectivo era mudar a maneira como as lideranças religiosas dessas mesquitas interpretavam o Alcorão. A este propósito, um membro da comunidade de Nanduadua referiu:

12 As entrevistas e discussões em grupos focais mostraram que em Mocímboa da Praia a atitude do Governo distrital para com o grupo se explicava pelo facto de parte dos elementos do grupo terem convivido com os oiciais da adminis- tração local. Por exemplo, de acordo com as fontes locais, uma das esposas de um dos líderes do grupo era funcionária da administração local. Além disso, alguns dos funcionários da administração local e da polícia, caso não tivessem dinheiro na hora, obtinham produtos de primeira necessidade nas bancas e lojas pertencentes aos líderes do grupo dos Al-Shabaab e pagavam no inal do mês.

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“O. B. e seus seguidores passaram por várias mesquitas e em todas elas procura- ram criar distúrbios. Chegaram a insultar os Álimos e os anciãos chamando-os ká- ir. A sua forma de interpretar o Alcorão era completamente diferente daquilo que é prática no Islão. Muitos de nós começámos a questionar e eles respondiam que nós não somos muçulmanos... somos káir e devíamos deixar de rezar naquela mesquita (...). Quando apanhavam um Mwalimu perguntavam porquê trabalha- va com o Governo e não seguia a Lei islâmica, porquê se transformar num agente do Estado, em vez de ser servidor do Islão... Durante as orações, eles reuniam-se nas varandas das mesquitas e começavam a rezar à sua maneira... O Sr. O. B. é que trouxe problemas [radicalismo] aqui em Mocímboa, mas o Governo não sabia (...)” 13

Devido à sua forma de actuar, O. B. e seus seguidores foram impedidos pelas lideranças religiosas de frequentar as mesquitas locais. Após a sua expulsão, O. B. e seus iéis segui- dores, maioritariamente jovens de classes sociais desfavorecidas e muitos deles sem uma educação formal, passaram a rezar na casa de um dos seus membros e em círculos muito fechados. De acordo com as nossas entrevistas, para o ataque às instituições do Estado em Mocímboa da Praia a 5 de Outubro de 2017, O. B. contou com o apoio logístico e inanceiro de A. A. M.; N. A.; N.; A. S.; H. M.; S. M.; A. S. M.; entre outros. Quem eram estes personagens?

A. A. M. , comerciante com diferentes tipos de negócios em Mocímboa da Praia e Tanzânia, era originário da aldeia de Malinde, em Mocímboa da Praia. Ele era considerado pela popu- lação como o líder do grupo dos Al-Shabaab e inanceiro do grupo. De acordo com fontes locais, o pai de A. A. M. – A. M. – foi um Mwalimu 14 e líder carismático na zona de Malinde, em Mocímboa da Praia, onde possuía uma mesquita e madrassa, frequentadas por jovens de Malinde. Sobre A. A. M., um dos entrevistados disse:

“(...). Antes de Outubro [2017], o Sr. A. A. M. desapareceu durante duas semanas. Quando voltou, ele retirou os ilhos de Mocímboa..ão sei para onde. Os que con- versavam com ele [Sr. A. A. M.] diziam que ele tinha levado os ilhos para ir estudar fora. O certo é que na madrugada do dia 05 [de Outubro de 2017] aconteceu o ataque... e nunca mais voltámos a ver Sr. A. A. M. ... só sabemos que os seus ne- gócios continuam aqui em Mocímboa. Ele alugou as suas lojas aos somalianos e nigerianos. Não se ouve mais falar dele. Mas temos prova que ele está vivo! Ele foi visto na zona dos bandidos [na zona sob controlo dos Al-Shabaab] (...) 15

N. A. era originário do bairro Nanduandua. Homem de pequenos negócios no mercado

13 Entrevista com F, habitante de Mocímboa da Praia, Mocímboa da Praia, 8 de Fevereiro de 2018. 14 Mwalimu signiica professor, em kiswahili. Nas comunidades rurais, os Mwalimu têm um grande prestigio e são muito inluentes. 15 Entrevista com R. A., habitante de Mocímboa da Praia, Mocímboa da Praia, 07 de Fevereiro de 2018.

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Para além dos actores locais, o grupo contava com o contributo fundamental dos líderes espirituais oriundos da Tanzânia, tais como o sheik A. A. e o sheik A. S. Falando sobre estes sheiks tanzanianos, um membro da comunidade muçulmana do bairro de Nanduadua su- blinhou:

“(...) historicamente, os sheiks tanzânianos têm uma grande aceitação no seio da comunidade muçulmana aqui na zona norte, particularmente em Mocímboa da Praia (...) O sheik A. A. e o sheik A. S. e ainda o sheik Hassan, quando chega- ram a Mocímboa logo tiveram uma grande aceitação dos jovens muçulmanos... Alguns desses jovens são negociantes nos mercados informais, outros campo- neses, carpinteiros, pescadores ou desempregados e sem escolarização (...) A maior parte destes jovens não fala português... fala línguas locais e o kiswahili (...) Estes sheiks tinham um discurso fervoroso e contundente contra antigas li- deranças religiosas locais e contra o Estado (...) Nas suas palestras eles tocavam os problemas dos jovens, tais como o desemprego e a falta de condições de vida e perguntavam por que é que eles [jovens] estavam na miséria quando Allah deu tanta riqueza a Mocímboa da Praia? (...)” 17

Como era feito o recrutamento?

Uma das questões que a nossa pesquisa exploratória procurou entender foi o recrutamento dos membros do grupo. Como é que ele ocorreu? Como é que os jovens chegaram a inte- grar o grupo? Em Mocímboa da Praia, o grupo dos Al-Shabaab focalizou os seus esforços de recrutamento tanto a nível local/nacional como também no estrangeiro, nomeadamente na Tanzânia ou ainda na região dos Grandes Lagos. De acordo com as nossas fontes, inter- namente, depois do ataque de 5 de Outubro de 2017, uma parte importante dos recrutas vinha dos distritos costeiros das províncias de Cabo Delgado e Nampula, nomeadamente Mocímboa da Praia, Macomia, Memba, Nacala-a-Velha e Nacala-Porto. Muitos desses recru- tas juntaram-se ao grupo sob promessas de pagamento de valores monetários, emprego e, em alguns casos, bolsas de estudo no estrangeiro.

As entrevistas e discussões em grupos focais realizadas no âmbito desta pesquisa mostram que o grupo dos Al-Shabaab de Mocímboa da Praia tinha montado uma rede diversiicada de recrutamento constituída por laços de casamentos, redes informais de amigos, madras- sas, mesquitas, negócios nos mercados informais e algumas associações informais de base

17 Entrevista com F.R., carpinteiro, Mocímboa da Praia, 21 de Novembro de 2017.

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comunitária de jovens muçulmanos. Nas linhas a seguir descrevemos a maneira como al- guns destes elementos viabilizaram a rede de recrutamento.

Laços de casamento

As estratégias de casamento constituíam um dos instrumentos mais eicazes na implan- tação do grupo. Com efeito, de acordo com as entrevistas, os elementos que se ixaram em Mocímboa da Praia, idos da Tanzânia, Quénia ou de outros países conseguiram obter a protecção das famílias locais via laços de casamento. Quando chegassem, casavam-se com as mulheres locais e recebiam dos sogros espaços para a construção das suas habitações, muitas vezes no mesmo quintal onde moravam os sogros. Dado o seu poder económico-i- nanceiro, esses elementos acabavam por se tornar uma importante fonte de sustento des- sas famílias e, em troca, recebiam protecção. Neste contexto, os casamentos contribuíram também para a radicalização da parte dos membros dessas famílias, na medida em que começaram a frequentar os espaços de culto do grupo.

Redes informais de amigos

As redes  informais de  amigos foram fundamentais para o processo de recrutamento de jovens para se juntarem ao grupo dos Al-Shabaab. Essas redes proporcionavam incenti- vos à  mobilização política, na medida em que passar o tempo com  amigos  podia servir para aumentar a propensão a participar em “projectos” voltados para temas colectivos. Mas quando existisse uma certa resistência nos grupos de amigos, os jovens recrutadores para- vam de se confrontar com os que pensavam diferente. Muitas vezes, tentavam doutrinar a família e o círculo de amizades; quando isso não funcionasse deixavam de lado a tolerância e passavam a ter uma visão de mundo única. Um dos nossos entrevistados conta como os seus amigos deixaram de falar consigo:

“Eu tinha cinco amigos e estávamos sempre juntos, mas de repente eles come- çaram a ter umas atitudes estranhas comigo... a toda a hora discutíamos sobre a religião e a necessidade de mudar a maneira de rezar nas nossas mesquitas. Como tínhamos posições diferentes eles deixaram de falar comigo e mais tarde começa- ram a conviver com pessoas que tinham a mesma forma de pensar e em círculos muito fechados.. descobri que faziam parte dos Al-shabaab” 18.

Na realidade, o uso de redes informais de amigos ou baseadas em laços de parentesco

18 Entrevista com A. K. M., vendedor informal, Mocímboa da Praia, 22 de Novembro de 2017.

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que o grupo dos Al-Shabaab fazia passar, muitas vezes servindo-se de códigos visuais que agradam ao público jovem (fotograias, ilmes e videojogos), falavam de uma luta por ideais: “defender os mais fracos; opor-se aos mais fortes; ajudar as populações necessitadas”.

É importante referir que não há uma uniformização dos curricula das madrassas, não só em Mocímboa da Praia como também no resto do país, facto que as torna locais férteis para a penetração de ideologias religiosas de cunho radical. Por exemplo, nos locais de culto e madrassas do grupo dos Al-Shabaab, ensinava-se que “em Meca não há peregrinação... se quiserem fazer peregrinação vão à Somália. Indo à Somália para a peregrinação Allah vai vos dar o paraíso” 22.

Internet e redes sociais

O crescente acesso à internet, associado à disseminação da telefonia celular, tem mudado a forma como as pessoas interagem e como acedem à informação e participam na política. As redes sociais são uma maneira extremamente importante para a transmissão de uma mensagem a um público-alvo. Tweets e postagens no Facebook transmitem emoções ao leitor. Assim como outros grupos extremistas, o grupo dos Al-Shaabab de Mocímboa da Praia também usava redes sociais como o Facebook, Twitter, WhatsApp e vídeos para re- crutar combatentes. Estes meios também eram usados para disseminar informações sobre as actividades do grupo e comunicação. A divulgação de vídeos tinha em vista inluenciar crenças e sentimentos que favorecessem o recrutamento. A maioria destes vídeos con- tinha mensagens em kiswahili e árabe de forma a passar a informação a potenciais recru- tas que falam estas línguas. Nos vídeos transmitidos, as mensagens tinham um conteú- do claramente jihadista. Os vídeos mais circulados pelas diferentes células do grupo dos Al-Shabaab na zona norte são do sheik Aboud Rogo Mohammed, mais conhecido pela população local como Aboud Rogo.

Que mensagens Aboud Rogo passa nos seus vídeos? Nos seus discursos, ele usa a “teoria do complot”. Convence os mais  novos  de que vivem num mundo corrupto, rodeados de pessoas que lhes mentem constantemente e levando-os a desconiar de tudo e de todos, fazendo-os sentir-se “especiais”.  Os extremistas violentos aproveitam o facto de os jovens encontrarem-se num período em que questionam a vida e a própria identidade para os convencer de que são “seres superiores”. O que sentem – dizem-lhes – é um “apelo divino”

aos jovens de Mocímboa da Praia e de Moçambique para que se juntassem ao grupo. 22 Entrevista com S, líder religioso local, Mocímboa da Praia, 23 de Novembro de 2017.

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para ajudarem a criar um mundo melhor. Com discursos deste tipo, os Al-Shabaab con- seguiram que jovens de Mocímboa da Praia e do norte de Moçambique começassem a isolar-se do mundo em que viviam e a aderir ao grupo. Os pais e Álimos das mesquitas e a escola perderam autoridade sobre esses jovens, pois passaram a ser vistos pelos recrutas como “impuros”, transmissores de uma mensagem que alimenta a mediocridade. 

Assim, em pouco tempo, o grupo dos Al-Shabaab conheceu um relativo crescimento em Mocímboa da Praia, o que permitiu que passassem de um pequeno grupo de “agitadores” nas mesquitas locais de mais ou menos 50 indivíduos para uma “força armada” de cerca de 300 pessoas, de acordo com fontes locais. Este grupo teve a capacidade para atacar o Es- tado e semear pânico nas comunidades locais, forçando o Governo central a enviar tropas para o terreno com vista a combatê-lo.

Que factores podem explicar a expansão das acções armadas do grupo para fora do distrito de Mocímboa da Praia? No nosso entender há, pelo menos, três factores.

O primeiro factor diz respeito à mudança da situação militar na zona. Depois de as Forças de Defesa e Segurança (FDS) terem sido vítimas de ataques em determinados postos avan- çados, elas decidiram retirar-se de alguns desses postos para consolidar as suas principais bases. Embora este novo arranjo protegesse os militares, ele tornou a população civil mais vulnerável à penetração do grupo dos Al-Shabaab, particularmente nas zonas mais afasta- das de Mocímboa da Praia. Além disso, o exército e a polícia mostram alguma diiculdade em realizar operações militares à noite. Bem informado sobre os seus alvos, o grupo dos Al-Shabaab lança a maioria dos seus ataques à noite e raramente enfrenta uma intervenção militar. De acordo com as nossas fontes, o moral das tropas das Forças de Defesa e Seguran- ça (FDS) parece baixo, especialmente nas unidades regulares do exército. O cansaço causa- do pelos ataques armados do grupo dos Al-Shabaab, os problemas logísticos e a sensação de que o Governo está a tratar os soldados de maneira injusta, especialmente no que diz respeito à alimentação e tempo de permanência no terreno, estão a causar frustração no seio das Forças de Defesa e Segurança (FDS). Os soldados estão irritados porque não têm comida suiciente e nem assistência médica. Muitos deles em Mocímboa da Praia, Macomia e Palma têm a impressão de que os seus produtos alimentares estão a ser desviados. Com efeito, alguns soldados acusaram altos oiciais de apropriação indevida de seus alimentos e bónus:

“(....) Estamos cansados com esta situação que se vive em Mocímboa... Cada dia que passa temos menos logísticas nos acampamentos militares... Muitos de nós

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Radicalização Islâmica
no Norte de Moçambique
O Caso de Mocímboa da Praia
Saide Habibe, Salvador Forquilha e João Pereira
Cadernos IESE N.º 17