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Morte E VIDA Severina

Literatura Brasileira - pdf livro Morte e vida severina
Disciplina

Cultura E Literatura Brasileira (CL73C)

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Ano académico: 2020/2021
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Universidade Tecnológica Federal do Paraná

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Universidade da Amazônia

Mo r t e e Vid a

Sever in a

d e Jo ão Ca b r a l d e Me llo Ne t od e Jo ão Ca b r a l d e Me llo Ne t o

NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal CEP: 66060- Belém – Pará Fones: (91) 210-3196 / 210- nead.unama

E-mail: uvb@unama

Morte e Vida Severina

de João Cabral de Mello Neto

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR
QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mais isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem falo ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina:

irmão das almas, onde uma terra que não dá nem planta brava. — E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? — Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte matada, numa emboscada. — E o que guardava a emboscada, irmão das almas e com que foi que o mataram, com faca ou bala? — Este foi morto de bala, irmão das almas, mas garantido é de bala, mais longe vara. — E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? — Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada. — E o que havia ele feito irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? — Ter um hectare de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. — Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas que podia ele plantar na pedra avara? — Nos magros lábios de areia, irmão das almas, os intervalos das pedras, plantava palha. — E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada? — Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos ombros da serra,

nenhuma várzea. — Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? — Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. — E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda? — Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala. — E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente do chumbo que tem guardada? — Ao cemitério de Torres, irmão das almas, que hoje se diz Toritama, de madrugada. — E poderei ajudar, irmãos das almas? vou passar por Toritama, é minha estrada. — Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das almas quem ouve nossa chamada. — E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa. — Vou eu que a viagem é longa, irmãos das almas, é muito longa a viagem e a serra é alta. — Mais sorte tem o defunto irmãos das almas, pois já não fará na volta a caminhada. — Toritama não cai longe, irmãos das almas, seremos no campo santo de madrugada. — Partamos enquanto é noite

frente a mim se multiplicam. Mas não vejo almas aqui, nem almas mortas nem vivas; ouço somente à distância o que parece cantoria. Será novena de santo, será algum mês-de-Maria; quem sabe até se uma festa ou uma dança não seria?

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI PARODIANDO A PALAVRAS DOS CANTADORES

— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas... — Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. — Finado Severino, etc... — Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação. — Finado Severino, etc... — Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves. — Uma excelência dizendo que a hora é hora. — Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora. — Duas excelências... -.. é a hora da plantação. — Ajunta os carreadores... -.. a terra vai colher a mão.

CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE ENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS NSTANTES E PROCURAR RABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.

— Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva;

só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida Severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais Severina para o homem que retira). Penso agora: mas por que parar aqui eu não podia e como Capibaribe interromper minha linha? ao menos até que as águas de uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina? Na verdade, por uns tempos, parar aqui eu bem podia e retomar a viagem quando vencesse a fadiga. Ou será que aqui cortando agora minha descida já não poderei seguir nunca mais em minha vida? (será que a água destes poços é toda aqui consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas? será que quando chegar o rio da nova invernia um resto de água no antigo sobrará nos poços ainda?) Mas isso depois verei: tempo há para que decida; primeiro é preciso achar um trabalho de que viva. Vejo uma mulher na janela, ali, que se não é rica, parece remediada ou dona de sua vida: vou saber se de trabalho poderá me dar notícia.

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

— Muito bom dia, senhora, que nessa janela está;

— Aqui não é Surubim nem Limoeiro, oxalá! mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá? — Em qualquer das cinco tachas de um bangüê sei cozinhar; sei cuidar de uma moenda, de uma casa de purgar. — Com a vinda das usinas há poucos engenhos já; nada mais o retirante aprendeu a fazer lá? — Ali ninguém aprendeu outro ofício, ou aprenderá; mas o sol, de sol a sol, bem se aprende a suportar. — Mas isso então será tudo em que sabe trabalhar? vamos, diga, retirante, outras coisas saberá. — Deseja mesmo saber o que eu fazia por lá? comer quando havia o quê e, havendo ou não, trabalhar. — Essa vida por aqui é coisa familiar; mas diga-me retirante, sabe benditos rezar? sabe cantar excelências, defuntos encomendar? sabe tirar ladainhas, sabe mortos enterrar? — Já velei muitos defuntos, na serra é coisa vulgar; mas nunca aprendi as rezas, sei somente acompanhar. — Pois se o compadre soubesse rezar ou mesmo cantar, trabalhávamos a meias, que a freguesia bem dá. — Agora se me permite minha vez de perguntar: como senhora, comadre, pode manter o seu lar? — Vou explicar rapidamente, logo compreenderá: como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar. — E ainda se me permite que volte a perguntar:

é aqui uma profissão trabalho tão singular? — É, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há: sou de toda a região rezadora titular. — E ainda se me permite mais outra vez indagar: é boa essa profissão em que a comadre ora está? — De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar; a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar. — E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim nesse lugar? — Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazemos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear

O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM.

— Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia

com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. — É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio. — Não é cova grande. é cova medida, é a terra que querias ver dividida. — É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. — É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. — É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca. — Viverás, e para sempre na terra que aqui aforas: e terás enfim tua roça. — Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas. — Agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia. — Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator. — Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: serás semente, adubo, colheita. — Trabalharás numa terra que também te abriga e te veste: embora com o brim do Nordeste. — Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. — Será de terra a tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça. — Terás de terra completo agora o teu fato: e pela primeira vez, sapato.

— Como és homem, a terra te dará chapéu: fosses mulher, xale ou véu. — Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. — Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida. — Esse chão te é bem conhecido (bebeu teu suor vendido). — Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo) — Esse chão te é bem conhecido (bebeu tua força de marido). — Desse chão és bem conhecido (através de parentes e amigos). — Desse chão és bem conhecido (vive com tua mulher, teus filhos) — Desse chão és bem conhecido (te espera de recém-nascido). — Não tens mais força contigo: deixa-te semear ao comprido. — Já não levas semente viva: teu corpo é a própria maniva. — Não levas rebolo de cana: és o rebolo, e não de caiana. — Não levas semente na mão: és agora o próprio grão. — Já não tens força na perna: deixa-te semear na corveta. — Já não tens força na mão: deixa-te semear no leirão. — Dentro da rede não vinha nada, só tua espiga debulhada. — Dentro da rede vinha tudo, só tua espiga no sabugo. — Dentro da rede coisa vasqueira, só a maçaroca banguela. — Dentro da rede coisa pouca, tua vida que deu sem soca. — Na mão direita um rosário, milho negro e ressecado. — Na mão direita somente o rosário, seca semente. — Na mão direita, de cinza, o rosário, semente maninha, — Na mão direita o rosário, semente inerte e sem salto. — Despido vieste no caixão,

Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, o fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia; é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha, Recife, onde o rio some e esta minha viagem se fina.

CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

— O dia hoje está difícil; não sei onde vamos parar. Deviam dar um aumento, ao menos aos deste setor de cá. As avenidas do centro são melhores, mas são para os protegidos: há sempre menos trabalho e gorjetas pelo serviço; e é mais numeroso o pessoal (toma mais tempo enterrar os ricos). — pois eu me daria por contente se me mandassem para cá. Se trabalhasses no de Casa Amarela não estarias a reclamar. De trabalhar no de Santo Amaro deve alegrar-se o colega porque parece que a gente que se enterra no de Casa Amarela está decidida a mudar-se toda para debaixo da terra. — É que o colega ainda não viu o movimento: não é o que se vê. Fique-se por aí um momento e não tardarão a aparecer os defuntos que ainda hoje vão chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro, onde se enterram os ricos, são como o porto do mar; não é muito ali o serviço: no máximo um transatlântico chega ali cada dia,

com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia. Mas este setor de cá é como a estação dos trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém. — Mas se teu setor é comparado à estação central dos trens, o que dizer de Casa Amarela onde não para o vaivém? Pode ser uma estação mas não estação de trem: será parada de ônibus, com filas de mais de cem. — Então por que não pedes, já que és de carreira, e antigo, que te mandem para Santo Amaro se achas mais leve o serviço? Não creio que te mandassem para as belas avenidas onde estão os endereços e o bairro da gente fina: isto é, para o bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros, e no tempo antigo, dos bangüezeiros (hoje estes se enterram em carneiros); bairro também dos industriais, dos membros das associações patronais e dos que foram mais horizontais nas profissões liberais. Difícil é que consigas aquele bairro, logo de saída. — Só pedi que me mandasse para as urbanizações discretas, com seus quarteirões apertados, com suas cômodas de pedra. — Esse é o bairro dos funcionários, inclusive extranumerários, contratados e mensalistas (menos os tarefeiros e diaristas). Para lá vão os jornalistas, os escritores, os artistas; ali vão também os bancários, as altas patentes dos comerciários, os lojistas, os boticários, os localizados aeroviários e os de profissões liberais que não se libertaram jamais. — Também um bairro dessa gente

que vem do Sertão de longe. — Desenrolam todo o barbante e chegam aqui na jante. — E que então, ao chegar, não tem mais o que esperar. — Não podem continuar pois têm pela frente o mar. — Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar. — E da maneira em que está não vão ter onde se enterrar. — Eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes, e uma coisa notei que jamais entenderei: essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos que enterrá-los em terra seca. — Na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte. — O rio daria a mortalha e até um macio caixão de água; e também o acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal. — E não precisava dinheiro, e não precisava coveiro, e não precisava oração e não precisava inscrição. — Mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço crescendo mais cada dia; morre gente que nem vivia. — E esse povo de lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando, cemitério esperando. — Não é viagem o que fazem vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS
CAIS DO CAPIBARIBE

— Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário de cidade e de vilas, e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas foices de corte e capina, ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam. Mas que se este não mudasse seu uso de toda vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, ao meu aluguel com a vida. E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida. A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de anhinga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não seca, vai toda a vida).

APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO

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